Imortais, mortais; mortais, imortais;
uns, vivendo a morte dos outros,
morrendo a vida dos outros.
(Heráclito)
Joana D’Arc morre. Mas não como sempre.
Dessa vez não vou deixá-la ir chorando para todo o sempre em chamas. Minha intenção é salvá-la, será que eu posso encontrar escapatória, entre as estrelas? Libertá-la da morte não é exatamente o que eu penso, não acho que a imortalidade se desprende de mim, então olho para ela e fico triste, tão feliz de que ela não tenha morrido.
O aspecto contraditório da cena na qual Joana é morta em praça pública, passa-se a sensação de termos algum espaço como “escapatória”, do cumprimento, de que sua morte seja definitiva. Os paradoxos que parecem depender um do outro para existir e que dessa maneira não seriam contraditórios, seriam o mesmo, e o que me faz dar de encontro com o surrealismo e ficar confuso, por que se eu tentar entender eu estaria apenas destruindo, mas se deixasse apenas ser como é e parar de criar essas guerras internas com toda a dor que há dentro de mim e em volta, cessaria, mas ao mesmo tempo não haveria redenção (“transcendência”). Se eu pudesse separar as partes, estaria bem, mas eu não posso por que elas estão juntas, ou então criar novas partes, mas adiantaria colocá-las, colando uma sobre as outras? Não ficariam apenas fragmentadas, uma mulher com partes de corpo arrancadas com fragmentos de sonho do que eu gostaria que fosse.
Joana D’arc como musa surrealista? Sobre o mito de Nadja, “no final tem-se a impressão de que ela era uma fantasia da imaginação que a instrumentalizara a fim de se libertar. Mais do que a realidade, ela habita somente o maravilhoso”. E se o maravilhoso for também às tochas, o fogo, as pessoas correndo de cabeça para baixo? É tentar encontrar otimismo na tragédia.
Posso encontrar o mesmo tipo de transcendência, seja nas imagens, nas palavras ou em qualquer possibilidade que se vê encurralada?
No surrealismo como última tentativa de escapatória, procuro por algo, não sabendo se encontro liberdade, redenção, mas que por enquanto se justifica em si mesmo, apenas procuro meu caminho, nada é levantado como certezas, mas preciso de algumas para que o meu coração estanque ou para que ele se dilua em um rio viscoso e branco. Vai-se em direção ao nada, este vazio repleto de possibilidades, mas incapaz de se afirmar de qualquer maneira que seja. Ele desconstrói tudo a sua volta, subvertendo a realidade em sua essência.
Não há mais a necessidade de olharmos as árvores, uma floresta, como a potencialidade de um navio, ou olhamos um casaco verde que descansa sobre a mesa como um casaco verde que descansa sobre a mesa, ou como a sombra do que um dia foi um casaco verde. “A rosa é uma rosa é uma rosa.”
Silêncio
Novidades sobre a manhã e a falta de grandeza dos meus pensamentos que se perdem espontaneamente por todos os lugares. Há sempre essa falta que não é mais descrita como carência, mas como um desejo de que me perdendo voluntariamente pela falta de mim mesmo em quaisquer dos lugares que não me são suficientes. Não vejo nem mais a necessidade de escrever, perde-se pela própria falta de recursos da vontade e da minha própria resignação passiva de mim mesmo.As possibilidades se limitam e renego às tochas, o fogo, as pessoas desumanas ou humanas em uma situação de completo caos, por aquela transcendência momentânea que nunca se cumpre, aquela que sempre se perde, que sempre está se transformando em algo que não sou eu.
Ao contrário de antes e como Joana que se vê presa, enquadrada a partir de lanças dos soldados em posição central, homens fecham correntes, impossibilitando qualquer escapatória. Cada vez mais ela “Subsiste todo um estado de coisas histórico, papes sociais e caracteres individuais ou coletivos, conexões reais entre estes, Joana o arcebispo, o reino, o povo, em suma, o processo.”
Ela estaria para sempre presa, mas os planos não podem controlá-la, essas relações de poder e controle não são realmente efetuadas, mas somente “o afeto, o expressado do estado das coisas”, o invisível.
Quando essas pressões deixam de existir, fugindo do espaço ocupado além das lanças, “excedendo suas próprias causas, enquanto as causas voltam para o seu lugar.”
Enquanto no extremo do canto direito temos o tronco com sua verticalidade distorcida, temos todo esse espaço completamente branco por cima de Joana no lado esquerdo que dá a sugestão de algo que possa ser visto como extra-campo da subjetividade de Joana.
E que depois é quebrado pela a cruz que lhe é dada, além de dar peso ao quadro e ao seu espaço, pode-se percebê-lo também como um fardo de algo que ela deveria sustentar, não a igreja católica em si, mas a sua própria vida”
Nunca poderia a ter salvado realmente, como poder tê-la, quando no momento em que a tenho ela parece inefável com o cheiro vazio da morte.
Joana D'arc está na morte, no silêncio que é necessário para que possamos nos libertar das formas, na revanche que travo com a realidade, na esperança de poder achar que posso usar meu tempo, quando na verdade queria unir o presente, o passado e o futuro.
O enquadramento cada vez mais fechando nela, o mesmo enquadramento da cruz aparece em meio a uma claridão provocada pelo céu e pelas chamas, ela morre e vemos o que parece ser o ponto de vista das pessoas que estão vendo ela morrer, alguém declara que queimaram uma santa.
“A luz risca e rasga, transgredindo os limites da vida e da morte.”
Armas começam a ser entregues para o exército tendo em vista de que algo está prestes a acontecer, tudo aquilo que estava subentendido vai se desvencilhar do não dito, para algo mais expressável como um conflito.